Folhetim | Desvairadas Gentes (1º. Episódio)

FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério

FOLHETIM – DESVAIRADAS GENTES (1º. Episódio)

– Traz lugar? – pergunta o homúnculo por detrás do balcão, por debaixo dos capachos e dos mata-moscas pendentes do tecto, entalado entre os grandes frascos de rebuçados e a pirâmide multicolor dos alguidares de plástico.

Ao silêncio de incompreensão do cliente, repete, aparentemente agastado:

– Traz lugar ou precisa de um saco? É que temos poucos.

Assim se fala na Drogaria Moderna, de João Cipriano (Herd.os), Lda, mais conhecida no bairro pelo Tem-Tudo. Fica numa dobra de velha Calçada de Lisboa, sinuosa como a história da própria Cidade, povoada de pequenas lojas que, tal como o Tem-Tudo, resistem, não se sabe bem como, à avalanche inexorável das novas modas que tudo arrastam e removem e destroem e refazem.

Gritos de mulher, onde era notória a rouquidão da raiva, ouviram-se no Tem-Tudo, nesse princípio de tarde de Primavera. Os clientes, três na ocasião, viraram em sintonia as cabeças para a porta e entreolharam-se numa mudez que, se soasse, diria:

– O que será?

Só o Senhor António continuou, imperturbável, a pesar a goma, nem um grama a mais, o olho assestado no fiel da balança, o cotovelo direito alçado, a manter o ritmo lento da saída das pedrinhas brancas do frasco com rolha de esmeril.

O Senhor Amaral, que tinha a banca do Totobola e de outros jogos da Santa Casa, tudo muito legal, nada de trafulhices, instalada em espaço sub-alugado na entrada do Café Snack-bar e Churrascaria CAFUNÉ (nome aprendido em telenovela brasileira) exclamou – Ó Diacho! e encaminhou-se para a porta, estreita e atafulhada de mercadoria, a não permitir passagem a mais do que uma pessoa de cada vez. Postou-se no passeio, pôs a cabeça de lado, a aproveitar o seu melhor ouvido, o direito, que o esquerdo devia andar atascado de cerume, a avaliar pelos sons que lhe fazia chegar como se viessem do fundo de caixa de cartão com tampa, acompanhados de ressonâncias e tudo. Já muitas novidades sobre a vizinhança lhe tinham escapado por via daquela orelha meio mouca.

A Dona Amália, que vendia queques para fora, receita da sua falecida mãe, uma delícia, a desfazerem-se na boca, viera ao Tem-Tudo por via de comprar um rapa-tachos novo, que o velho já cumprira bem a sua obrigação, mas agora, de tão gasto, largava pedacinhos de borracha que poderiam misturar-se na massa e estragar-lhe o negócio que tanto jeito lhe dava para ajudar o neto.

(continua)

 

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